Quando não há vínculos, há o bullying
Atualmente, é recorrente no meio escolar a preocupação com um fenômeno bastante antigo, mas de conceituação recente, o bullying. Este artigo aborda o bullying como consequência de um processo de desvinculação humana promovido pela estrutura econômica acompanhada pelas novas tecnologias de comunicação, sem a pretensão de ser mais uma problematização dos efeitos desta prática no processo de ensino-aprendizagem e de formação e autoafirmação do indivíduo, promovidos pelo ambiente escolar. Para tanto, primeiro, definiremos o que entendemos por vínculo.
O vínculo é algo que sempre norteou a existência humana. Os primeiros hominídeos surgiram em um ambiente extremamente hostil, eram animais que estavam se deslocando de um estilo de vida nas árvores, para um nas savanas, portanto não eram realmente adaptados, nem para um nem para outro; eram animais frágeis, não possuíam grandes mecanismos de defesa, não possuíam garras, chifres, presas, veneno ou qualquer outro tipo de proteção, inclusive sua estatura era muito convidativa a ataques de predadores. É incrível pensar que este mesmo animal iniciou um processo evolutivo que o levaria ao topo da cadeia alimentar. Mas como?
Mesmo sendo impossível dar uma resposta definitiva para este questionamento, podemos ao menos levantar os fatores que contribuíram para esta escalada evolutiva. Dentre eles daremos destaque à capacidade humana de estabelecer vínculos.
O vínculo é um sentimento “de fazer parte”, que surge das relações sociais (institucionais ou não) e é expresso pela adesão do indivíduo aos valores do grupo. A sociologia entende o homem como um ser social, o que significa afirmar que só possuímos as qualidades do que consideramos “humano” quando vivemos em sociedade. Temos vários casos de pessoas que foram privadas do convívio social e desenvolveram comportamentos não aceitáveis pela sociedade como, por exemplo, o de Kaspar Hauser (Alemanha - século XIX) e o das irmãs Amala e Kamala (Índia - século XX). São as relações humanas que produzem os valores, ou seja, as ideias que dão significado às nossas ações. Ao conjunto de valores produzidos e reproduzidos por um povo damos o nome de cultura. A cultura, portanto, não é algo estático, pelo contrário, é uma eterna construção, o que nos faz afirmar que os valores de uma sociedade são históricos, dialogam com o espaço e o tempo.
Igualmente, a história é outro produto humano, a consciência da ação de seu grupo sobre o meio e o relacionamento dele com outros grupos ao longo do tempo é o motor do processo de formação de identidade, ou seja, de reconhecimento de sua história e de sua cultura. Fica claro, portanto, a importância do vínculo para a existência não só de uma identidade social, mas também de uma identidade individual, pois o indivíduo só tem consciência de si em oposição ao coletivo. Sendo assim, não seria exagero afirmar que a perda dos vínculos é algo que põe em risco a sociedade.
E afinal, onde se encaixa o bullying nesta reflexão? Simplesmente ele é o mais novo fenômeno desencadeado pelo sentimento “de não fazer parte” típico do processo de desvinculação. O foco deste problema deve ser, então, mais o porquê de hoje observarmos um aumento na ocorrência deste processo, do que os efeitos deste tipo de comportamento para o funcionamento social.
O processo de desvinculação do homem não é recente e, aliás, sempre existiu, pois seria ilusão acreditar que os valores de uma sociedade são aceitos unanimemente pelos indivíduos, a novidade é que a contemporaneidade intensificou este processo ao ritmo de uma progressão geométrica, efeito das estruturas adotadas pelo sistema capitalista.
Segundo Karl Marx, o capitalismo desumaniza o homem através do que conceituou como alienação do trabalho. Para o autor, o capitalismo reduziu a sociedade a duas classes: a burguesia, detentora dos meios de produção (terra, ferramentas, técnicas, matéria-prima); e o proletariado, detentor da força de trabalho. Como não possuem meios de produção, os proletários são obrigados a vender sua força de trabalho à burguesia, a alta oferta de mão de obra, por sua vez, diminui seu valor. Por fim, o salário recebido é baixo e raramente suficiente para garantir ao trabalhador o produto final de seu trabalho. Assim, no sistema capitalista, muitos são obrigados a viver em condições subumanas, o homem é privado de sua liberdade e a sociedade deixa de fazer sentido. Quebra-se assim o vínculo.
Mas não é apenas a estrutura produtiva a quem podemos responsabilizar, a questão se apresenta também como um problema ético-comportamental. Sob a perspectiva de outro teórico, Max Weber, o espírito capitalista contém muito do individualismo característico da ética protestante, outro componente contrário à identificação e ao vínculo. Mas o que realmente vamos problematizar é o desenvolvimento das tecnologias da comunicação e os efeitos que acarretam ao vínculo social.
A história das tecnologias da comunicação se relaciona de maneira direta com o capitalismo. Da invenção da escrita (4000 a.C.) até o Renascimento, não houve muitos progressos no que diz respeito às tecnologias de comunicação, as inovações se deram a partir da era Moderna. A invenção da prensa por Gutenberg significou algo semelhante à invenção da internet em nossa era; salvaguardadas as devidas proporções, a consequência foi uma dinamização no processo de produção e circulação de informações. Mas o efeito daquela invenção foi exatamente contrário aos de hoje: estimulou o vínculo social. Foi somente com o resgate dos valores e saberes clássicos promovidos pelo humanismo que pôde se desenvolver na Europa a ciência e a filosofia moderna.
Na filosofia, a modernidade foi marcada pelo Iluminismo, corrente de pensamento que trouxe a preocupação com o social, entendia o homem como um ser naturalmente bom, mas que sem a devida orientação e controle, tendia a ser corrompido por experiências ruins, daí a necessidade de promover à sociedade um maior controle. De fato, a sociedade como a conhecemos hoje, deve muito ao Iluminismo, ideias como os direitos inalienáveis (propriedade, liberdades individuais e isonomia), a organização política baseada no sistema de representatividade, a estrutura do Estado dividida entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, e o papel da educação como formadora do indivíduo e de cidadania. Fica patente a contribuição do Iluminismo para a formação do vínculo social, uma vez que incutiu na mentalidade humana valores que estreitaram o compromisso do homem pelo próprio homem.
Entretanto, com a revolução industrial, o mundo começa a se transformar de maneira drástica, as fronteiras naturais e culturais começam a ser transpostas pelo advento de novas tecnologias: energia elétrica, automóveis, telégrafo, telefone, rádio, cinema. Processo intensificado no século XX, cuja grande inovação talvez seja os veículos de comunicação de massa. A televisão, comunicação por satélites, os portáteis (telefonia móvel, computadores, GPS) e a internet, a maior de todas as revoluções. Nunca na história da humanidade se produziu e reproduziu tanta informação, mas além de um maior contato entre os povos e culturas, este processo trouxe várias espécies de intolerância, o ultranacionalismo, o genocídio e o racismo.
Atualmente, esses meios atuando em conjunto criaram um mundo literalmente paralelo, o mundo virtual. O que se percebe é que cada vez mais o homem vem se tornando dependente dessas tecnologias, ao ponto de nossas relações interpessoais estarem sendo intermediadas excessivamente por elas. Some a isto a já mencionada alienação, o individualismo, os problemas sociais e a intolerância, o resultado em nossa sociedade é o enfraquecimento do vínculo humano. A falta de contato ente os indivíduos é preocupante, pois somente ela poderia resgatar os valores necessários para frear esste processo e promover a identificação entre os indivíduos.
O fenômeno chamado bullying se enquadra perfeitamente nessa problemática e sua abordagem excessiva acaba por contribuir ainda mais para sua ocorrência. As novas gerações, precoce e totalmente integradas às novas tecnologias, se isolam cada vez mais do contato humano e, quando este acontece, muitas vezes é conflitante, pois, pelo pouco contato, há baixa tolerância às diferenças. Não acreditamos que não exista o bullying, mas sim que sua supervalorização torna problemas corriqueiros de relacionamento, que os indivíduos são obrigados a superar, um “crime”. Quando isso acontece, o problema acaba envolvendo autoridades: pais, professores e, em casos extremos, até mesmo o sistema judiciário, o que nos torna cada vez mais dependentes de intermediações para nossos relacionamentos.
Cabe, por fim, às instituições sociais e autoridades correspondentes, ficarem atentas ao bullying, para que saibam não apenas intervir menos nas relações interpessoais, para intervir melhor quando realmente necessário, caso contrário, estaremos banalizando não só o fenômeno em si, mas principalmente as relações humanas.
Artigo produzido pelo prof. de Sociologia Petrus Ferreira Ricetto - Curso G9
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Petrus, parabéns pelo raciocínio brilhante que fez sobre os vínculos em sociedade. O homem é reconhecido como um animal social: “qualquer um que não consegue lidar a vida comum ou é totalmente auto-suficiente que não necessita e não toma parte da sociedade, é um bicho ou um deus” (Aristóteles, 384-322 a.C.). O homem como ser social está envolvido de alguma forma evidente de relacionamento com outros: dando suporte, demandando, ditatorial, justa, explorativa ou altruísta. Essa dualidade bem X mal origina todos os males que advindos dessa busca por vínculos.
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