“Ser professor é passar horas e horas pensando em cada detalhe daquela aula que, mesmo ocorrendo todos os dias, é única e original...”
E foi à procura desse detalhe que ao manusear livros e mais livros em busca de um texto para elaborar uma prova, deparo-me com este título Entre maritacas e sabiás. Achei-o um pouco estranho, mas por que não me certificar da criatividade do autor ao desenvolvê-lo?
Assim, comecei a leitura, e, à medida que a avançava, verificava que a essência do cenário descrito fazia parte do meu dia a dia.
Não tinha outra saída, ali estava o texto que eu procurava.
.Entre maritacas e sabiás
Texto I
[...] É uma excursão. O ônibus está lotado. Seu itinerário o leva pelos mais fascinantes cenários. Passa pelos sopés de montanhas, atravessa florestas de árvores gigantescas, cruza planícies verdes cheias de animais, margeia cenários paradisíacos ao longo das praias, atravessa rios cristalinos... A viagem chega ao fim. Saem os excursionistas. Adolescentes. Gastaram todos os filmes de suas câmeras fotográficas. Reveladas as fotos, vem o espanto: nenhuma foto do cenário. Para dizer a verdade, o ônibus permaneceu com as cortinas fechadas o tempo todo. As fotografias são, todas elas, fotografias de adolescentes sorridentes.
Notei que, para os adolescentes, não importa o lugar para onde vão. Os olhos deles não veem cenários. O lugar é apenas o cenário aonde a turma vai se encontrar para representar a mesma peça que era representada na cidade de origem. Os adolescentes jamais desembarcaram deles mesmos. Os seus olhos registram uma coisa apenas: a turma. Na verdade, não é bem a turma. Seus olhos registram: “eu-na-turma”.
Para isso há uma explicação [...]. Todos nós temos uma profunda necessidade de reconhecimento. É preciso que o outro me olhe e que eu sinta que o seu olhar está dizendo: “Gosto de você. É bom que você exista”. [...]
[...] Se vocês prestarem atenção, perceberão que as relações entre os adolescentes, reduzidas à sua condição mínima, se resumem em: “Me vejam, me vejam, me vejam”. Essa é a razão por que se comportam como maritacas, todos gritando ao mesmo tempo. Não suportam ficar longe dos olhos dos outros. Longe dos olhos, agarram o telefone. A substância das conversas entre os adolescentes, ao telefone, não é aquilo que eles dizem, mas o fato de que há alguém que ouve. Longe dos olhos dos outros, eles se sentem perdidos. Nada mais terrível para um adolescente que passar um fim de semana no sítio paradisíaco dos pais, na tranquilidade da natureza, na beleza dos jardins, no gozo das mordomias sozinho.
[...] Para essa doença não há remédio. Ela se cura com o tempo.
(Campinas-SP: Papirus, 2008. p.38-40)
Texto II
Quando saio a andar de manhã cedo passam por mim bandos de adolescentes indo para a escola. Já consigo identificar os grupos, que vão alegremente maritacando suas coisas, na leve felicidade de pertencer a uma turma. Falam sobre beijos [...], festas.
Esses não me comovem. Comovem-me aqueles que estão sempre sozinhos. São diferentes. Na roupa, no corpo, no jeito de olhar fixado no chão. Não têm estórias nem de beijos nem de festas para contar. Comovo-me com eles porque eu também já fui assim. Fui um solitário na minha adolescência. Menino de cidade pequena do interior de Minas, minha família mudou-se para o Rio de Janeiro. E meu pai cometeu um grande erro, movido pelo desejo sincero de me dar o melhor: matriculou-me num dos colégios da elite carioca [...]
Albert Camus diz que ele sempre havia sido feliz até que entrou no Liceu. No Liceu, ele começou a fazer comparações. Eu poderia ter escrito a mesma coisa. Ali, eu me descobri motivo de risos dos outros. Eu falava devagar e cantado, dizia “uai” e falava os “erres” de carne e mar como falam os caipiras, torcendo a língua. Também os meus jeitos de vestir eram jeitos de caipiras. E o dinheiro que levava comigo era dinheiro de pobre. E os clubes que eles frequentavam não eram o meu eu não frequentava clube algum. Claro que jamais fui convidado para as festinhas e, se tivesse sido convidado, não teria ido. E também jamais convidei um colega para ir à minha casa. Tinha medo que minha casa fosse casa pobre demais.
É isso que eu gostaria de dizer aos adolescentes solitários, sem turma, sem festas, sem estórias de beijos e amores para contar, as noites de sábado em casa, o telefone em silêncio: vocês são meus companheiros. Eu andei pelos caminhos em que vocês andam.
Mas sou agradecido à vida por ter sido assim. Porque foi em meio ao sofrimento dessa terrível solidão que tratei de produzir minhas pérolas. “Ostra feliz não faz pérola.” Comecei então a andar sozinho pelos caminhos onde os outros adolescentes não iam: a música, a arte, a literatura, a poesia, a filosofia. Andando por esses caminhos, descobri aqueles que pareciam comigo. [...]
E foi então que comecei a olhar para as maritacas com um certo sentimento de superioridade. [...] O fato é que, compensação ou não, a partir daí, as alegrias que tive nas produções da minha solidão foram maiores que as tristezas da minha condição de adolescente solitário. A solidão passou a ser, para mim, uma fonte de alegria. Eu não precisava gritar como maritacas para ser ouvido.
As maritacas gritam, e todos as ouvem, mesmo sem querer. Mas o canto do sabiá solitário, ao final da tarde, em algum lugar da floresta, faz todo mundo se calar para poder ouvir... Isso eu lhes digo, solitários: há muita beleza escondida na sua tristeza. Não tenham dó de si mesmos. Tratem de usar o martelo e o cinzel...
(Idem, p. 43-6.)
Enfim, concluí a prova, e numa manhã de terça-feira, 10/11/2010, linda por sinal, os alunos começam a fazê-la. Lá fora, “as maritacas” aplaudem e vibram um gol feito. “As maritacas, professora!” e voltam a fazer a prova.
Após algum tempo, o silêncio toma conta do espaço onde estamos, e, ao longe, um sabiá canta. Alguns alunos, atentos, levantam a cabeça e me olham, querendo dizer: “ouça, professora, o sabiá solitário canta!”
E eu leio em seus olhos: entendi tudo, professora!
E nós, professores, temos entendido o canto de nossas maritacas e de nossos sabiás?
Profª Tereza
Os dois textos integram a obra E aí? Cartas aos adolescentes e aos seus pais, do psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro Rubem Alves.
Postado pela profª Tereza Francisca de Siqueira Montalvão
Professora de Língua Portuguesa do Curso G9
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É Tereza...Acredito que estamos no caminho certo, buscando conhecimento para entendermos nossas maritacas e sabiás! Você já notou que esses sons são músicas para nossos ouvidos?
ResponderExcluirParabéns pelo excelente trabalho que realiza no G9!
Lindo texto, realmente emocionante!
ResponderExcluirQuantos sabiás não desejariam ser maritacas e quantas maritacas não desejariam ser sabiás! Estamos em constante mutação, sempre tentando nos conhecer melhor e também aos outros. Ser professor é muito mais do que saber conteúdos, é ouvir maritacas e sabiás.
Prof Maíra
Seu texto nem precisaria ter terminado com uma pergunta, tamanha a provocação que ele traz. A pergunta já está sendo feita desde o primeiro parágrafo: estamos sabendo lidar com esses alunos? É realmente difícil, mas acredito que a solução seja algo parecido com o seu trabalho, Tereza. Parabéns.
ResponderExcluirFds pqp vcs professoras chatas pra caralho
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